A recente aprovação do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, com 18 votos favoráveis e apenas 6 contra, levanta uma série de questionamentos sobre o futuro da capital federal. O episódio é grave e tem um precedente análogo na saúde pública do DF: a desfiguração do Plano Bandeira de Mello. Robusto e bem executado durante alguns anos, o Plano deu lugar a decisões políticas que desfiguraram o sistema original, com muitos prejuízos para a população. Assim como a saúde pública foi desviada de seu plano inicial, agora o PPCUB ameaça deixar Brasília desfigurada. E do mesmo modo terá consequências negativas para a qualidade de vida dos candangos.
Brasília foi concebida pelos arquitetos Lúcio Costa e Oscar Niemeyer com características únicas, que incluem áreas verdes vastas e construções baixas que permitem a visão desimpedida do horizonte. Estes, entre outros atributos, conferiram à capital federal o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela UNESCO, em 1987. O PPCUB, enviado há três meses pelo governo, propõe uma série de mudanças que incluem a redução desses espaços verdes e a modificação da destinação de áreas importantes. Entre as propostas aprovadas estão a criação de lotes nos Setores de Clubes Norte e Sul, a construção de comércios varejistas nos Setores de Embaixadas Norte e Sul, e o aumento da altura dos prédios nos Setores Hoteleiros Norte e Sul.
Especialistas apontam que as modificações aprovadas por quem deveria zelar pela capital não apenas agridem e desvirtuam o projeto urbanístico original de Brasília. Tem tudo para agravar problemas de mobilidade urbana, sem oferecer soluções adequadas. O projeto pode ainda incidir sobre questões de segurança em áreas sensíveis, como o setor de embaixadas e as proximidades das residências oficiais da Presidência e Vice-Presidência da República. Mudanças como estas não podem ser decididas no Buriti, sem uma ampla consulta a todos os segmentos com interesse e autoridade no assunto.
O precedente ocorrido na saúde serve de exemplo e reflexão. O Plano Diretor de Saúde do DF, elaborado pelo médico Henrique Bandeira de Mello, foi um marco na assistência à saúde da população, antecipando em quase duas décadas os princípios estabelecidos na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde de Alma-Ata, em 1978.
A proposta de Bandeira de Mello previa uma rede de serviços básicos espalhada pelo território, com uma estrutura hospitalar integrada e comandada pela Fundação Hospitalar do Distrito Federal (FHDF), focando na universalização e na eficiência dos serviços. Entretanto, ao longo dos anos, o sistema de saúde do DF sofreu desvios em seu planejamento original. A criação do Instituto Hospital de Base (IHBDF), agora Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal (IGESDF), para administrar parte da estrutura pública, além de concorrer com a própria Secretaria de Saúde, resultou em um aumento de custos sem a melhoria proporcional da assistência. A estrutura da rede pública não acompanhou o crescimento populacional, especialmente nas áreas do Entorno do DF.
O PPCUB, com suas mais de 100 mudanças propostas, parece seguir o mesmo caminho tortuoso. Ignorar as recomendações de entidades como o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), que apontam lacunas e imprecisões no projeto, pode levar a uma descaracterização irreversível do conjunto urbanístico de Brasília. A analogia com a saúde pública é clara: decisões políticas mal planejadas (e até mal intencionadas) podem comprometer a essência de projetos originalmente sólidos.
Ao revisitarmos o Plano Bandeira de Mello, vemos que os princípios de planejamento, unidade de comando, gestão focada e compromisso com a população foram fundamentais para o sucesso inicial do sistema de saúde do DF. Da mesma forma, a preservação de Brasília exige um compromisso contínuo com os princípios urbanísticos que a tornaram um patrimônio mundial. É essencial avaliar os fatos históricos, reconhecer os erros e retomar as práticas que já demonstraram sua eficácia, servindo dignamente às futuras gerações. Tanto na saúde pública como no urbanismo, em primeiro lugar devem vir o interesse público e a qualidade de vida! Brasília já foi e pode voltar a ser exemplo.