Doença mental também é doença

‌“A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. Entre tantas frases marcantes, esta certamente se destaca no filme Coringa, de 2019. Além de dar vida à “biografia” de um dos maiores vilões do Batman, a trama revela também como a sociedade negligencia pessoas com doença mental. E é exatamente aí que a arte se parece com a vida: nesta semana, em pleno Janeiro Branco (mês de alusão à saúde mental), nos deparamos com a terrível morte de dois policiais. Dentro da viatura, um atirou no outro e, depois, tirou a própria vida. A tragédia alerta para a precariedade da assistência à saúde mental no Distrito Federal.

Policiais que conheciam o autor dos disparos afirmaram que ele estava passando por problemas psicológicos e estava com síndrome do pânico. E mais: o PM já teria sido avaliado e transferido, mas não houve qualquer ação para retirá-lo do serviço de patrulhamento armado. Em outra notícia sobre a tragédia, a informação é de que a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) só tem um psiquiatra no quadro de médicos efetivos para atender a aproximadamente 10 mil integrantes da tropa. E, fora da corporação, o cenário não é muito diferente.

Segundo dados de 2022 do próprio Governo do Distrito Federal, de todos os afastamentos do serviço público por doença, 40% são por doenças mentais. Mesmo considerando que possam haver fatores de ordem pessoal, a desvalorização dos servidores e as péssimas condições de trabalho a que são submetidos favorecem o adoecimento mental. A pressão sofrida por esses trabalhadores (em especial os da saúde e segurança pública) e a sobrecarga de trabalho são agravantes que, muitas vezes, desencadeiam situações de depressão, pânico, entre outras. Afinal de contas, estamos falando de pessoas e não de máquinas.

Importante ainda salientar que o absenteísmo no serviço público afeta a entrega de serviços essenciais aos cidadãos. Portanto, investir na saúde mental dos servidores é também investir na prontidão e qualidade do atendimento prestado à população. Mas prevenção parece não ser o forte do GDF. Primeiro, a tragédia. Depois, a providência – isso quando ela vem. Vale lembrar, sem reforçar estigmas, que pessoas com a saúde mental negligenciada, sejam elas servidoras públicas ou não, são ameaças para si e para os outros. Há poucos dias, uma mãe matou o filho autista, em Águas Claras, e depois também tirou a própria vida.

Em setembro do ano passado, já havia alertado para a precariedade da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do DF. Há déficit de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais… E o problema certamente não é a falta de profissionais no Distrito Federal. No que diz respeito aos psiquiatras, há 456 na Capital. Mas apenas 100 estão na rede pública. Os dados são da Demografia Médica, de 2023, da Associação Médica Brasileira (AMB). Os trabalhadores existem. Não existe a vontade do governo em resolver o problema.

Faltam ainda na rede pública Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), policlínicas e ambulatórios em número suficiente para atender a demanda. Aqui, vale a lembrança: em 2010, a Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde (Prosus), do MPDFT, determinou, por meio de ação civil pública, a implantação de 25 residências terapêuticas e 19 CAPS a mais no DF. Apenas cinco Centros foram implantados de lá para cá, 14 anos depois.

Neste contexto, é, no mínimo, questionável que se defenda a extinção de hospitais especializados, como o Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), em Taguatinga, por conta de uma política antimanicomial no País. Algumas pessoas perguntam porque ele ainda existe. Mas, o fato é que ele ainda é o principal dispositivo para internações na saúde mental no DF, em um cenário de precarização dos serviços de atenção psicossocial.

É preciso dar condições para que o cidadão consiga cuidar da saúde mental. Sem isso, tudo o que vem depois, como tentativas de reformas psiquiátricas, é demagogia. É na prática que acontece o cuidado e a prevenção. Nós nunca sabemos, de fato, como é estar na pele de alguém que sofre de doenças mentais – e dos seus familiares. A tragédia pode estar escondida por trás da depressão, da síndrome do pânico, da esquizofrenia ou bipolaridade… Saúde mental é coisa séria! Que tenhamos dias e notícias melhores.