Narrativas políticas não salvam vidas, só aumentam a confusão no SUS

Você conhece o personagem cômico Adolfo Borges? Nas eleições de 2018, ele ficou famoso pela “propaganda eleitoral” que detalhava seu projeto para o Brasil: o “Brasil Melhor”. No vídeo, ao pontuar as “ações” que pretendia implementar, ele afirma: “eu formarei a melhor equipe, com os melhores profissionais, que terão as melhores ideias, com mais aspectos positivos e menos negativos. Juntos, chegaremos ao fim da corrupção. Este é o meu compromisso”. É uma sátira. E até poderia ser mais engraçada se não aproximasse tanto da realidade das narrativas políticas descoladas da realidade.

Agora, vamos ao projeto do atual governo: o “Brasília Melhor”. Com a melhor equipe, composta pelos melhores profissionais, que têm as melhores ideias, com mais pontos positivos do que negativos. O roteiro é igual, né? Mas, como venho dizendo ao longo dos anos, a realidade precisa ser levada a sério. E é preciso compromisso com as ações e seus resultados. O que parece não ocorrer nesta gestão.

Em 2018, quando ainda na primeira campanha ao GDF, o governador afirmou que iria extinguir o Instituto Hospital de Base (IHBDF). E mais: reaproveitar os trabalhadores contratados na unidade. No entanto, após tomar posse, o discurso mudou e a ação foi expandir o modelo do Instituto para outras unidades de saúde. Agora, após morte de cinco crianças nas unidades geridas pelo atual transformado IGES-DF, a narrativa copia o marketing do candidato fictício Adolfo Borges. “Estamos trabalhando para coibir qualquer tipo de procedimento que a gente possa evitar”, afirmou a vice-governadora Celina Leão, em entrevista recente.

Você entendeu? Nem eu. E o objetivo, me parece, é este mesmo: ser vago, raso, confundir. Mas, sem perder a ternura! O “estamos trabalhando” não diz nada. Usar as palavras “transparência” e “fiscalização” em discursos não ameniza a realidade. Narrativas políticas, sabemos, podem moldar a percepção pública. Só que até nisso é preciso estratégia: o DF soma, até agora, mais de 380 mortes por dengue. E mais cinco crianças morreram em hospitais públicos. Como e quando esse cenário vai ser efetivamente mudado? Quais as diretrizes políticas para investimento em saúde no Distrito Federal?

Como representante de uma classe, a dos médicos, me preocupam as declarações recentes de pessoas que estão à frente da gestão do DF. Procuram culpados, apontam, falam em investigações policiais e, em momento algum, assumem seus erros. Fala-se, inclusive, que 49% dos atendimentos feitos na Capital são “frutos da região do Entorno”: para justificar a superlotação de hospitais e UPAs. Mas, esse dado vem de onde? Quando a pesquisa foi feita? Veja: se uma estratégia em saúde não é feita com base em números reais… há perigo na esquina.

Outra afirmação que me chama a atenção, infelizmente de maneira preocupante, é: “…Mediante tudo isso, estamos fazendo o programa Humanizar”. Podemos começar, então, pela humanização do tratamento dispensado aos servidores. Dando condições de trabalho. Isso sem falar na recomposição salarial. Que é, sim, uma demanda dos profissionais de saúde. E justa. Quem quer trabalhar sem salário compatível e sem estrutura? Com o risco ainda de ser responsabilizado em praça pública caso algo dê errado. Então, seguindo as metas do programa “Brasília Melhor”, presumo que aqui seria a parte do: “vamos humanizar humanizando”.

É preciso levar a gestão pública a sério. O voto de confiança da população precisa ser respeitado. Já me coloquei à disposição diversas vezes para debatermos com a atual gestão a situação dos médicos. Acredito mesmo que o diálogo e a troca de experiências podem fazer toda a diferença neste cenário. A crítica, neste caso, precede a melhora. A melhora real: com planejamento, estratégia e ações efetivas, para curto, médio e longo prazo.