Operadores do Direito e da Saúde discutem judicialização

Seminário realizado pelo SindMédico reuniu magistrados, promotores, advogados e médicos para discutir tópicos da judicialização da saúde

Os problemas estruturais que emperram o pleno funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) geram sobrecarga de demandas no sistema Judiciário e a ação do Judiciário nas questões da saúde geram novas distorções e poucas soluções. Nesse contexto, as instituições sentem a necessidade de tecnicidade para avaliação de processos judiciais aplicados á área da saúde e à prática da Medicina, o que dá margem à uma maior integração entre operadores da Saúde e do Direito.

No I Seminário de Direito Médico do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal (SindMédico-DF) foi consenso entre os palestrantes que as soluções devem ser construídas pela gestão pública, com atuação no campo político. O evento, que ocorreu neste sábado (30), das 9h às 19h, discutiu a assistência ao parto, a judicialização da saúde, a criminalização do gestor na Secretaria de Saúde (SES-DF) e os erros atribuídos aos médicos. Mais de cem pessoas, entre médicos e advogados, se inscreveram.

Entre os palestrantes o sindicato recebeu representantes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Tribunal de Contas do Distrito Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional DF e da Secretaria de Estado de Saúde.

Painel 1 – Assistência ao parto

Em sua apresentação, o desembargador Josaphá Francisco dos Santos afirmou que fez uma ampla pesquisa e “não encontrou jurisprudência de condenação de gestores públicos”. Segundo ele, “no caso do setor público, o Estado e o médico é que têm sido acionados (e o gestor responde em ação regressiva do Estado em seu desfavor). No setor privado tem prevalecido a responsabilidade solidária do médico e do hospital.”

O perito médico legista da Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do MPDFT, Rodrigo Avelar, tratou da responsabilização do obstetra. Para ele, é necessário que tema seja amplamente debatido porque o número de denúncias vem aumentando e é necessário entender os motivos. “Os médicos precisam se fazer presentes na discussão técnica em relação à violência obstétrica. As entidades têm que se posicionar quanto a isso”, afirmou ao apontar que grupos da sociedade civil organizada estão avançando na imposição de entendimentos a respeito do tema, sem necessariamente ancorar as definições em bases técnicas e científicas.

O presidente do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal (SindMédico-DF) e da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Dr. Gutemberg Fialho, fez uma apresentação sobre o dia a dia dos obstetras na rede pública de Saúde do DF. Ele salientou que os hospitais públicos do Distrito Federal não têm capacidade (tanto de recursos humanos quanto de estrutura e materiais) para atender à crescente demanda. Segundo ele, por isso, a insatisfação da gestante começa já na classificação de risco. “O profissional de saúde acaba sendo o alvo dessa insatisfação quando atende a paciente”, destacou.

Dr. Gutemberg também explanou sobre o partograma, gráfico no qual são anotadas a progressão do trabalho de parto e as condições da mãe e do feto. “Antes de falar disso, é importante lembrar que não temos a quantidade ideal de obstetras por plantão”. “No HMIB (Hospital Materno Infantil de Brasilia), por exemplo, há necessidade de seis plantonistas por plantão e a rotina é haver três e, às vezes, são dois, como os obstetras, podem dar uma assistência adequada?”, questionou. “O partograma não pode ser usado como único indicativo de mau atendimento. Às vezes, a paciente é examinada às 9h da manhã e só vão conseguir examiná-la novamente às 13h. Na fase crítica do parto, a ausculta deve ser feita de cinco em cinco minutos”.

A secretária adjunta de Assistência à Saúde, Lucilene Florêncio, apresentou os números referentes a leitos obstétricos e ginecológicos na SES-DF e a aos recursos humanos à disposição. Informou que até outubro deste ano, foram realizados mais de 31,8 mil partos nas dez maternidades públicas do DF. As três unidades de saúde que mais partos realizaram no período foram, pela ordem, os hospitais regionais do Gama, de Ceilândia e de Samambaia.

Painel 2 – Judicialização da Saúde no DF

Sobre a judicialização na Saúde, a defensora pública do Núcleo de Assistência Jurídica à Saúde, Roberta de Oliveira Melo, esclareceu que a Defensoria não é responsável pelos critérios de judicialização. Por isso, quando as ações chegam ao local, “o órgão não pode negar um pedido por justiça”. Até junho deste ano, foram realizados 2.091 pedidos de ações. A falta de medicamentos está no topo da lista dos principais problemas, com 620 pedidos. Em segundo lugar estão os exames (320) e, em terceiro, UTIs (312).

No mesmo painel, a médica e advogada do Grupo de Trabalho Interinstitucional de Apoio Científico na Área de Saúde da PGR, Josélia Carvalhaes, explanou sobre os reflexos da judicialização na Saúde. Segundo ela, de março a outubro deste ano, foi contabilizado o recebimento de 2.822 ações judiciais no Núcleo de Judicialização da SES-DF. O principal reflexo disso, apontou, “é o privilégio do direito individual à custa da coletividade usuária do SUS”. Além disso, destacou, como resultado desses processos, há ainda a imposição do Poder Executivo de reduzir o escopo de outras políticas públicas por meio do cumprimento imperativo de decisão judicial.

Para falar da visão do Judiciário sobre o tema, o juiz, coordenador do Comitê Distrital de Saúde, Rodrigo Donati Barbosa, também palestrou. Segundo ele, o que se deve combater é a judicialização abusiva. “O Judiciário está aberto. Ele jamais vai se fechar e nem pode. Os pleitos são, muitas vezes, justos. O que fizemos foi adotar algumas medidas para tentar resolver esse problema, que é um problema sério”, disse.

O promotor de Justiça da 1ª Promotoria de Defesa da Saúde (PROSUS), do MPDFT, Jairo Bisol, ressaltou, em sua apresentação, que, para tentar solucionar o problema da judicialização na Saúde, o caminho passa por ampliar cada vez mais o diálogo entre os atores: o MPDFT, a magistratura, a Defensoria, as Procuradorias e os gestores. Para ele, “não existe direito da Saúde. Existe o direito a uma política de Estado. E o que está ocorrendo hoje é um choque na divisão de poderes”.

Painel 3 – Criminalização do gestor da SES-DF

A advogada criminalista Jaeni Azevedo apresentou a visão do SindMédico-DF sobre a questão da criminalização do gestor na saúde – fato que tem reflexo na assessoria jurídica prestada aos sindicalizados, uma vez que muitos que ocupam cargos de gestão são representados pela assessoria jurídica do sindicato em processos decorrentes dessa atuação. “Assumir qualquer atividade à frente da gestão é uma responsabilidade e essa pessoa, em geral, sairá da função tendo muito a declarar ao Judiciário, ao Tribunal de Contas ou ao Ministério Público”, afirmou a advogada.

O conselheiro do Tribunal de Contas do Distrito Federal, Manoel Paulo de Andrade Neto, corroborou a observação da advogada, ao apontar a grande quantidade de processos da área da pasta da Saúde que tramitam pelo TCDF. “O maior ‘cliente’ em tomadas de contas especiais e processos do TCDF é a Secretaria de Saúde”, afirmou.

O promotor Jairo Bisol, em sua segunda participação, apontou a questão da interferência da política partidária na gestão do Sistema Único de Saúde e a fragilidade dos modelos de gestão. “O SUS carece de um modelo de gestão”, afirmou. Disse que houve o início discussão nas conferências nacionais de saúde, mas não prosperou. “O Brasil desistiu de discutir o modelo de gestão, daí se começou a abrir para o terceiro setor, o que também não foi boa ideia, embora tenha dado ferramentas de gestão mais atuais, mais flexíveis, mais dinâmicas”, pontuou o promotor.

Para Bisol, o que mais expõe o sistema a desvios e erros, inclusive no aspecto da execução orçamentária é a política partidária. “Não se consegue fazer política pública, efetivando sistemicamente o SUS se não se blindar a saúde pública do político”, acusou.

O desembargador Sebastião Coelho da Silva observou que deve-se partir da premissa de que quem assume um cargo na gestão pública o faz de boa fé. “A má fé na gestão pública é um ponto fora da curva”, destacou. Também observou a severidade da Lei de Improbidade Administrativa, que nem sempre é proporcional ao resultado do descumprimento dela. “Um ato pode até caracterizar algum tipo de improbidade sem causar prejuízo. Quantos atos não caracterizados como improbidade dão prejuízo tremendo à nação brasileira”.

Ele também destacou que o servidor é penalizado em ações movidas contra o Estado em função da previsão das ações regressivas previstas no artigo 37 da Constituição Federal. Esse chamado direito de regresso é o meio do qual o Estado dispõe para ressarcir-se de prejuízo, responsabilizando o agente público responsável pelo dano causado a terceiros.

Painel 4 – Erro atribuído ao médico no DF

O conselheiro corregedor do Conselho Regional de Medicina Cristofer Martins apontou que o caos no sistema público de saúde é motivador de boa parte das denúncias contra os profissionais da Medicina. “No CRM temos um número muito grande de reclamações que se originam de falhas no relacionamento entre médicos e pacientes”, apontou. “Essas falhas ocorrem, na imensa maioria das vezes, pelo fato do médico estar imerso em um ambiente totalmente hostil e agressivo tanto para seu exercício profissional quanto para a prestação de assistência do ponto de vista do paciente”, explicou.

Em decorrência desse ambiente e da sobrecarga de trabalho, problemas como preenchimento incompleto ou inadequado de prontuários são recorrentes, o que pode ter repercussão negativa em caso de processo ético no CRM ou o processo judicial.

O presidente da Comissão de Direito Médico da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional DF (OAB-DF), Wendel do Carmo Santana, discorreu sobre a suspensão condicional de processo judicial. Essa é uma prática prevista pela Lei 9099/95, a qual prevê que o Ministério público pode oferecer o benefício da suspensão do processo em crimes em que a pena mínima for igual ou inferior ao um ano, mediante condições estabelecidas e reparação do dano causado. Essa oferta de acordo é feita no momento em que o MP oferece a denúncia. ”Uma dúvida comum entre os médicos quando recebe uma notificação dessa natureza é se ele reconhece culpa ao aceitar o acordo. A resposta para isso é não, ele não está reconhecendo culpa”, explicou o advogado.

O assessor técnico do Ministério e perito médico legista Rodrigo Avelar, por sua vez, explicou que as análises técnicas em denúncias feitas contra médicos. Elas são feitas por meio dos prontuários médicos, o que destaca a importância da minúcia no preenchimento. O médico citado, afirmou, pode procurar a assessoria técnica para apresentar informações para fundamentar essas análises. “A sala da assessoria é aberta ao médico que foi alvo de denúncia mas não posso fazer essa busca ativa”, afirmou. “Poucos nos procuram, mas os que procuram são ouvidos e, se quiserem, é tomado o termo para inclusão no processo”, disse.

Último palestrante do evento, o juiz de Direito Fábio Francisco Esteves, presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal e Territórios (Amagis-DF) fez uma apresentação falando da aplicação da teoria da perda de uma chance na prática da medicina. Essa teoria é adotada em responsabilidade civil e considera que aquele que, intencionalmente ou não, retira de outra pessoa a oportunidade de algum benefício, responde por isso. Seria, por exemplo, o caso de um taxista que toma o caminho errado e, por isso, faz com que o passageiro perca um compromisso e sofra prejuízo.

Em tese, essa teoria se aplica a profissões de fim e não de meio. Na área médica não há como garantir entrega de resultado esperado pelo paciente. Uma discussão maior sobre isso se dá na área da cirurgia estética, mas ainda não há consenso e há um fórum de discussão permanente sobre o tema entre os operadores do Direito. “Ninguém melhor do que os médicos para participar nessas discussões”, observou o magistrado. “É importante que as instituições médicas acompanhem os processos e ofereçam subsídios técnicos de forma institucionalizada aos operadores do Direito”, incentivou.

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I Seminário de Direito Médico do SindMédico-DF