Sobre príncipes, gestão, narrativas e saúde pública

O Príncipe e o Pequeno Príncipe

Há algumas semanas, em uma defesa no STF, um advogado confundiu o livro “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, com “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel. As obras nada têm em comum (ou quase). E a confusão logo rendeu memes e viralizou. Confesso que não sou tão íntimo assim das redes sociais. Mas, concordo que o erro foi feio.

Apesar de serem obras diametralmente distantes, aqui no GDF temos um elo entre “O Príncipe”, de Maquiavel, e “O Pequeno Príncipe”, de Saint-Exupéry. Me lembro que um dos asteroides visitados pelo Pequeno Príncipe era o B-325, habitado por um rei. Apenas por ele. O rei “de tudo e de todos” gostava de dar ordens. Para ele, escreveu Saint-Exupéry, “o mundo era muito simplificado. Todos os homens são súditos”. E é neste capítulo, apenas neste, que o principezinho viajante esbarra nas lições de O Príncipe, de Maquiavel.

O rei, do asteroide B-325, “fazia questão que sua autoridade fosse respeitada”. Ele não tolerava desobediência. Apesar disso, a pureza da obra de Saint-Exupéry não permite que o monarca chegue às lições de Maquiavel sobre como alcançar o poder e não perdê-lo. Se chegasse, o rei solitário saberia como manipular o Pequeno Príncipe para que ele ficasse em seu planeta, sendo seu único súdito. O contrário, no entanto, parece acontecer na vida real, aqui no DF inclusive, onde governantes constroem políticas para fazer a população acreditar em mentiras.

Explico aqui. Sem respostas para o caos na saúde, o GDF quer, a qualquer custo, fazer crer que “a saúde pública do DF precisa de terceirizações”. O governo chegou até a dizer, no aniversário de 63 anos do Hospital de Base, que o Iges-DF  “tem proporcionado uma melhoria no atendimento, uma ampliação do número de leitos, a melhoria de várias áreas”. Narrativa. Acredito que a gestão esteja orientada por Maquiavel: “nunca tente ganhar pela força o que pode ser conquistado pelo engano”, diz O Príncipe.

Assim, tentando enganar a população, o caminho para a terceirização de serviços públicos vai sendo aberto. A verdade é que o SUS é perfeito e só não consegue cumprir o seu papel porque o caos na saúde pública é um projeto.  Nós, médicos, sabemos que não faltam profissionais no Distrito Federal. Falta valorização do servidor público. E isso inclui condições de trabalho e um Plano de Cargos e Salários atraente. Não adianta anunciar concurso e, lá na ponta, deixar o colega sem os equipamentos necessários para realizar uma cirurgia. Ninguém, em sã consciência, quer prestar atendimento assim.

O que se faz no DF, e em outros lugares do País, é a construção de uma narrativa para validar a terceirização de serviços básicos que o Estado deveria e pode prover. Por quê? Contratos milionários que dão margem a superfaturamentos e desvios. A verdade é que a terceirização facilita, e muito, os caminhos tortuosos da administração de verbas. Enquanto isso, o cidadão continua na fila de espera. E os servidores continuam padecendo da falta de investimentos no SUS.

É certo que ambas as obras têm sua importância, tanto a de Maquiavel quanto a de Saint-Exupéry. E é bom conhecer uma e outra. Inclusive, para não confundir. No entanto, quando o assunto é política e gestão, sugiro atenção às lições de O Príncipe: “quem engana sempre encontrará quem se deixa enganar”. É preciso estar atento.

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